A língua portuguesa brasileira presenteia seus fluentes com expressões únicas, criativas e cirúrgicas na construção e explicação da realidade pautada por essa língua.
"Quebrar a cara” é uma delas. Tão corriqueira, tão natural, usada Brasil afora e compreendida por todas as gerações quando se quer comunicar frustração, expectativas não atendidas. Tenho pensando muito sobre essa expressão em seu sentido figurado a partir da experiência do literal.
Há uma semana atrás, sofri um acidente de treino. Estava no treinão de sábado de jiujitsu, em posição de guarda fechada - com as costas e cabeça apoiados no chão, prendendo o adversário entre as pernas - quando o colega do rola ao lado foi raspado e caiu na minha cabeça. Foi uma fatalidade; o equivalente a estar jogando futebol e a trave cair na sua cabeça em termos de probalidade e relação com a prática do esporte; mas aconteceu. E doeu. Imediatamente um galo ENORME surgiu na minha testa. Fui atendida pelos médicos colegas de tatame, estava fora de grandes riscos, deveria só cuidar do hematoma. Passei o resto do dia deitada colocando gelo na testa, sentindo o calombo formado, do tamanho de uma laranja diminuir, todo o sangue acumulado fluir, deixando apenas uma pele flácida, com textura de colchão d’água por sobre a testa. Os colegas médicos e lutadores mais experientes já haviam me alertado, todo aquele líquido acumulado no galo, desceria pelo cominho linfático dos olhos; dito e feito, no domingo acordei com um a pálpebra do olho esquerdo em tons de roxo, lindamente esfumados e delineados, como num belo olhão de maquiagem drag.
Fui à farmácia comprar uma pomada para hematomas; a atendente me ofereceu uma hirudoide e uma caixinha de duo de sombras roxas da tracta para tentar reproduzir o efeito no outro olho e assumir uma maquiagem pesada.
Ainda bem que levei apenas a pomada, pois mau uso maquiagem no olho e no dia seguinte, o arroxeado bonito, se espalhou pelo olho inteiro, escorreu para o outro e assim segue até o momento.
Foi uma semana de alguns desafios sociais…A primeira coisa que se pensa de uma mulher com esse tipo de hematoma é que ela foi vítima de violência doméstica. Tive que explicar no trabalho, para os porteiros, os motoristas de uber, atendentes de mercado e todo mundo que avistava minha cara quebrada e demonstrava solidariedade ou preocupação; que foi um acidente. Fui até uma UPA para ser examinada novamente e pedir um exame para garantir que tava tudo bem mesmo (foi uma pancada bem forte na cabeça). Estava de óculos escuros ao passar na primeira triagem, o funcionário pediu para eu retirar para verificar o documento. No momento que viu meus olhos, colou um adesivo na minha pulseira de identificação: “triagem especial". Fui chamada para segunda triagem e, para minha surpresa, a enfermeira estava acompanhada de uma policial, pois minha lesão foi identificada como indicativa de agressão. Precisei provar que não fui vítima de nada, mostrei fotos do dia do acidente, conversas com os colegas e até uma foto minha rindo com uma lata de cerveja gelada sobre o hematoma durante a resenha do pós treino. Não sabia que existia esse tipo de coisa no SUS. Fui avaliada como “em não estado de trauma” e liberada para a triagem normal.
Essa condição também me encadeou alguns desafios pessoais. Apesar do laudo da policial, eu estava sim “em estado de trauma". O trauma psíquico dos desencadeados por essa mudança, estar numa cidade nova e todo o abalo gerado em minha noção de identidade… isso foi ao extremo, quando o reconhecimento facial do meu celular falhou. Minha cara estava tão quebrada, deformada em cores e inchaço que o dispositivo usado pra ler meu rosto não me reconheceu. Assim como o app do RG digital. Logo, minha cabecinha, também quebrada, usou dessa experiência para endossar a ideia que já vinha forte; de não possuir nenhum recurso material, nenhuma ferramenta física para me reconhecer.
Os lugares, as roupas, as pessoas… tudo aquilo que constrói a ideia de uma identidade está sendo questionado e reinventado nesse momento que vivo agora.
Eu já tinha quebrado minha cara - no sentido figurado - quando decidi mudar de cidade sem calcular a qualidade de frustrações que deveria enfrentar nessa jornada. E aí, eu vou lá, e quebro minha cara - no sentido literal - me forçando a ficar mais dentro de casa ainda, comprometendo a rotina frágil que peno pra manter aqui e reforçando o sentimento de inadequação estampado na minha cara.
É aí que entra Silvano Salles - o brega cura onde dói - Nessas reflexões ao longo do termo "quebrar a cara", me lembrei da música homônima do cantor. Ele canta sobre a insistência em um amor que não o valorizava. Até que chega um dia que ele cansa, resolve parar, dar um basta nisso de uma vez por todas. O jogo vira, pede pra ela parar de ligar atrás dele, comunica que já está com outra, e essa sim, lhe dá o carinho amor e atenção que merece. E ainda lembra do que sua antiga sogra alertou; que somente quando o perdesse, iria dar o devido valor, finalizando:
Pagou pra ver,
quebrou a cara.
A sensação da minha cara quebrada vem de reconhecer o devido valor de alguns setores da minha vida que somente na distância dessa experiência eu consegui mensurar. Eu quis muito estar aqui, ainda quero e não pretendo deixar de estar… mas eu paguei pra ver - e quebrei minha cara. O brega cura no sentido figurado; o corpo cura no sentido literal. Observar o processo natural do corpo em lidar com um trauma, o rosto inteiro se reconfigurando em cores, texturas e volumes; ensina que a vulnerabilidade desse momento é necessária para que se cure - e então, se reconheça e restabeleça numa outra forma; igual mas diferente.
Uma nova velha cara
(Pronta pra ser quebrada novamente)